O “CRIME” DO CONSUMIDOR QUE DEIXA DE USAR MÁSCARAS NO INTERIOR DOS ESTABELECIMENTOS COMERCIAIS EM SANTA CATARINA

O “CRIME” DO CONSUMIDOR QUE DEIXA DE USAR MÁSCARAS NO INTERIOR DOS ESTABELECIMENTOS COMERCIAIS EM SANTA CATARINA

O uso da máscara de proteção individual como medida adicional ao distanciamento social ajuda a evitar o contágio do novo coronavírus, fato esse que levou a Câmara dos Deputados a aprovar, nesta quarta-feira, dia 20 de maio, um projeto que altera a Lei 13.979, de 06/02/2020, dispondo sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública internacional decorrente do atual surto do novo coronavírus.

O projeto de lei ora aprovado, que vai à votação no Senado Federal, incluiu a máscara de proteção individual como uma das medidas de enfrentamento que podem ser impostas pelo Ministro da Saúde e pelos Secretários Estaduais e Municipais de Saúde.  Além desta previsão, a norma aprovada dispõe que “é obrigatório o uso de máscaras de proteção individual para circulação em espaços públicos e privados acessíveis ao público, em vias públicas e em transportes públicos, na forma estabelecida pelo Poder Executivo”.

A regulamentação e a fixação do valor da multa pelo descumprimento, constará de decreto regulamentar, que poderá ser editado de forma concorrente pelo Presidente da República, pelos Governadores e pelos Prefeitos, fato este que poderá causar conflito e insegurança jurídica quanto à forma de cumprimento e quanto aos valores de multa.

Ora, se está reservado à lei federal impor a obrigatoriedade do uso de máscaras para a circulação em espaços públicos, bem como em shoppings, supermercados, lojas, teatros, cinemas, igrejas, etc, isso nos a crer que os atos normativos menores que lei, como os regulamentos (decretos) e regimentos (portarias, notas técnicas), não podem impor o uso deste acessório.

Assim como o uso de capacetes, cintos de segurança e EPIs (equipamentos de proteção individual), o uso das máscaras só se torna obrigatório por lei em sentido estrito, ou seja, norma geral e abstrata emanada do Poder Legislativo, já que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (CF/88, art. 5o, II).

Por isso se demonstra ilegal o Decreto 64.959, de 04/05/2020, do Governador do Estado de São Paulo, que torna obrigatório o uso de máscaras em espaços públicos, incluindo ruas e calçadas, bem como no interior de estabelecimentos comerciais. O caso já foi levado ao Judiciário Paulista (TJSP) que negou a liminar se adentrar em profundo ao mérito, mas acolheu o pedido para afastar as infrações penais em caso de descumprimento da norma, ou seja, o autor do manda de segurança não pode ser autuado se for flagrado circulando sem máscara.

É nesse contexto, de lei federal dispondo sobre o tema e de órgão judiciário afastando a punição imposta por decreto, que queremos avaliar a obrigação de uso de máscara de proteção individual pelos consumidores que adentram à estabelecimentos comerciais catarinenses.

Em Santa Catarina não foi imposto por decreto, e muito menos por lei, o uso de máscara de proteção individual, quer em espaços públicos ou privados de acesso ao público. Há, isto sim, uma determinação do ex-secretário estadual de saúde, contida na Portaria SES n. 244, de 12/04/2020, para que os “comércios de rua em geral” limitem o atendimento à 50% da capacidade, providenciem o controle de acesso, a marcação de lugares reservados aos clientes, o controle da área externa do estabelecimento, a organização das filas para que seja mantida a distância mínima de 1,5 metro entre cada pessoa, a higienização de quem entra ou sai com álcool-gel, além da colocação de cartazes informativos sobre as medidas sanitárias.

Tudo isso, repita-se, tornado obrigatório por ato administrativo e, diga-se de passagem e com alguma ironia, assinado pelo mesmo secretário de saúde contra quem a Justiça determinou um bloqueio de bens no valor de R$ 32,5 milhões por suspeita de ilicitudes na compra de respiradores.

Além dessa insubsistente portaria, há uma Nota Técnica (020/2020) e uma Nota de Alerta (001/2020), ambas da Superintendência de Vigilância Sanitária de Santa Catarina, que recomendam e alertam sobre cuidados para evitar infecção do novo coronavírus em mercados e estabelecimentos que entreguem alimentos, mas nem mesmo estes atos, que não são normativos, se referem ao uso de máscara de proteção individual.

Não obstante a falta de qualquer norma idônea que imponha a obrigação de uso da máscara de proteção individual em estabelecimentos comerciais, a Polícia Civil do Estado de Santa Catarina está flagrando consumidores sem máscara no interior de lojas e supermercados e conduzindo os tais à Delegacia de Polícia para instaurar procedimento penal punitivo dirigido ao Juizado Especial Criminal por suposto crime do art. 268 do Código Penal, ou seja, infringir determinação executiva destinada a impedir a propagação de doença contagiosa, cuja pena é de detenção de um mês a um ano e multa.

Tenho usado máscara e apoio o uso. Também apoio que o poder público faça ostensivas campanhas publicitárias de caráter educativo, informativo e orientativo (CF/88, art. 37, §1º) propagando a importância do uso da máscara na prevenção da doença. Eu apoiaria ainda a concessão de incentivos de qualquer ordem, inclusive financeiros, para a promoção de medidas sanitárias. Só o que não posso apoiar é o abuso de autoridade ao se impor, por ato administrativo, aquilo que só a lei poderia obrigar.

A medida fiscalizatória em questão, se fosse unicamente administrativa, já seria indevida, todavia, vem tomando contornos criminais em face da nova Lei de Abuso de Autoridade, que considera crime a instauração de procedimento investigatório à falta de qualquer indício da prática delituosa (art. 27), portanto, o Governador do Estado está pondo em risco as autoridades policiais ao cobrar deste aparato a ilícita repressão ao regular exercício de direito dos supermercadistas e dos consumidores catarinenses.

E não se diga que estamos vivendo tempos excepcionalíssimos e que tais medidas são necessárias, pois o Direto que se vale do ensino de dois mil anos, como o nosso, foi construído levando em consideração situações pandemicas como esta, que aliás se deram no Brasil há apenas cem anos. Todos os despotismos da história ocorreram fundados no argumento da imperiosa necessidade, logo, esse deveria ser o momento de reafirmarmos o caráter da lei e não de pisoteá-la.

O aparente apoio que o Poder Judiciário de muitos estados vem conferindo a tais arbítrios não pode mudar o posicionamento de cidadãos que tem por imperativo ético o agir corretamente em todas as situações, pois, como já disse certa vez o apóstolo Pedro “melhor é sofrer por praticar o bem, do que por fazer o mal” (I Pe 3:17).

Portanto, se as autoridades vão constranger ou punir os consumidores pelo regular exercício de direito de abster-se do uso de máscara no interior de estabelecimentos privados, que seja do modo mais difícil e constrangedor para os agentes públicos, ou seja, mediante a sua responsabilização por crime de abuso de autoridade e, ainda, apoiado em decisões judiciais que ficarão nos anais do árbitro judicial, depondo contra a qualidade jurídica dos magistrados que as prolatarem.

Será sempre assim? Eu duvido, pois como na parábola do Juiz Iníquo (Lucas 18), aprendi a confiar nas decisões do Poder Judiciário quando elas emanam da insistência de uma advocacia que não esmorece diante do desdém judicial pelo justo constitucional. É certo que depois de muita insistência, a pena do magistrado irá se dobrar ao poder de onde tira sua força, que não é do governo e nem mesmo do Estado, mas da Norma Fundamental que o constitui.

Por Manolo Del Olmo (OAB/SC 13.976) – Advogado Titular da Del Olmo & Advogados Associados