PREFEITO NÃO É AMANUENSE!

PREFEITO NÃO É  AMANUENSE!

Reverter no Tribunal de Justiça uma condenação de Prefeito Municipal por ato de improbidade é tarefa que traz imensa satisfação, certamente, mas quando esse resultado vem através de voto de extrema lucidez e marcado com profundo senso de utilidade no que toca à lei de improbidade, aí a tarefa é muito mais do que satisfatória, é recompensadora, em especial quando o causídico fez sustentação oral no julgamento e presenciou rico debate quanto ao tema.

Por isso dou lugar, abaixo, para transcrever o didático trecho do inteiro teor do Voto do eminente Desembargador HÉLIO DO VALLE PEREIRA que, na presidência da Quinta Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, julgou, à unanimidade, a procedência parcial de nosso recurso de apelação que visava reverter a condenação de um prefeito catarinense, de um pregoeiro, de um assessor jurídico e de um empresário licitante, todos condenados por ato de improbidade supostamente praticado em pregão presencial realizado no mandato de 2009 a 2012.

Importante dizer que o recurso não foi acatado integralmente e muito embora o Prefeito e o Pregoeiro tenham sido absolvidos, o empresário licitante e o assessor jurídico municipal foram condenados, logo, não se trata aqui da empolgação do defensor que vê nas razões favoráveis ao seu cliente um motivo para divulgar o acórdão, mas sim a satisfação de quem vê no julgado uma profundidade e um senso crítico que realizam substancialmente a dialética processual e, por isso, tal julgado homenageia tanto o jurisdicionado, como o seu defensor técnico.

Vamos ao trecho em comento:

“Tenho, porém, que o Chefe do Executivo, seja de que esfera for, não é um amanuense; não possui controle absoluto dos afazeres internos e rotineiros dos servidores que lhes cercam. Não lhe cabe velar pelo cotidiano da repartição, tal como fosse dotado de poderes sobre-humanos, que lhe garantissem a onisciência. Ele vela pela superintendência das coisas mais amplas. Responde evidentemente pelas condutas que diretamente lhe estão afetas; não goza, malgrado a maior discricionariedade que possui, de imunidade quanto às decisões políticas (em sentido nobre) que o posto lhe assegura quanto à Administração dos assuntos mais latos atrelados ao seu múnus. Tem, de fato, cargo de mais elevado tirocínio (e imensa responsabilidade), mas não serão meras assinaturas que, dissociadas de um vero propósito desonesto que lhes dê suporte, trarão consequências no campo da improbidade administrativa.

Tenho total dificuldade, nessa linha, em supor que um prefeito se transmude em um fiscal, acompanhando as inúmeras licitações efetuadas naquela esfera. Como um diligente contador, haveria de acompanhar cada pagamento, descortinando irregularidades, detectando falhas, velando inclusive pela descoberta em cada certame público quanto a possíveis vínculos de parentesco entre seus subordinados e os sócios das empresas participantes.

Isso é algo praticamente impossível. Em caso como este, o prefeito haverá de se fiar realmente nos escalões inferiores, que lhe abastecerão tecnicamente. É impossível, repito o termo, que ele passe a apurar um a um os registros – uma eventual falha na documentação ou um possível vínculo entre os servidores de seu quadro e todas as empresas que disputam contratos com a Administração –, até mesmo por que dificilmente terá o adestramento técnico para tanto.

Faço a comparação com a direção do foro, assunto que nos é mais próximo do Judiciário e em relação ao qual convivi até recentemente. As notas vêm às mancheias; o secretário aponta os contratos cumpridos. É o almoço para jurados que se diz servido; as tolhas que foram lavadas; o serviço de jardinagem que foi executado e assim indefinidamente. Não há como acompanhar a minudência dessas tarefas. O correto seria exonerar o diretor do foro de assinaturas quanto a esses assuntos pelo simples fato que ele não os acompanha. Mas a mentalidade burocrata não permite essas simplificações. Quer-se um encadeamento de assinaturas. E se ficar revelado, depois, que naquele mês, as toalhas não foram lavadas na quantidade de praxe? Se a comida não tinha a qualidade de antes e que justifica maior preço? Será que o juiz haveria de pedir que o enxoval do fórum que lhe fosse apresentado para conferir quão alvas estavam as toalhas ou haveria de ser convocado antes de servido o lanche para os jurados com fome?

Nada disso, é claro, faz sentido.

É ainda mais fora do razoável, nessa linha, que se imagine que o prefeito seja ímprobo sem ao menos ter efetuado algum ato concreto. Refiro-me, mais precisamente, a uma ação destinada a fazer com que outrem fosse beneficiado por elo que possuía com um de seus servidores; uma ordem, ainda que indireta ou meramente verbalizada aos encarregados, que se relacionasse ao desejado direcionamento da competição pública. Ademais, ainda que se reconheça nos fatos aqui discutidos uma decorrência da afronta à impessoalidade – haja vista as já mencionadas relações pessoais entre aqueles dois acionados –, nada repugnante a esse respeito foi revelado nesta ação em desfavor do ex-prefeito, que não pode mesmo ser responsabilizado meramente por ter sido… prefeito! A rigor não houve, vou ser insistente, demonstração de que o elo existente entre aqueles tenha contado, no plano fático, com uma conduta ímproba do réu (retirado).

O que se pretende, entendo, é uma responsabilidade objetiva; na realidade, mais do que uma responsabilidade sem culpa, uma responsabilidade sem conduta.

A improbidade administrativa tem realmente definição legal muito ampla. Está associada intuitivamente a atos de repugnante desonestidade, que impliquem enriquecimento ilícito de agente público ou mesmo de terceiro (art. 9º da Lei 8.429/92), mas também se estende às hipóteses de apenas prejuízo à Administração (art. 10). Do mesmo modo, só que mediante menor penalização, até ofensas a valores jurídicos, ainda que sem potencial econômico, merecem o enquadramento áspero na Lei de Improbidade (art. 11). Como contraponto, exige-se, como já mencionado, a conduta conscientemente voltada para a ilicitude, ou ao menos um comportamento culposo (na hipótese do art. 10).   

Deve-se fugir da tentação de vincular a improbidade a um estereótipo do administrador atavicamente desonesto, tal como um chefe de quadrilha profissionalmente voltado à delinquência. Mesmo fatos que possam ter menor reprobabilidade podem caracterizar a ilicitude da Lei 8.429/92, desde que se possa realizar a associação com as condutas típicas e elas estejam animadas a um propósito deliberadamente atrelado à ofensa ao menos aos princípios da boa administração (art. 11).  

Seja como for, a essência da improbidade como infração de cunho grave subsiste, não devendo ser confundida com qualquer postura irregular que possa ser tomada por um agente público. As reações jurídicas devem ser proporcionais à seriedade dos veros interesses envolvidos.

Daí a necessidade de se apartarem pecados veniais, erros no cotidiano administrativo, notadamente de índole apenas formal, com atos de improbidade. A forma é fundamental na condução das coisas públicas, pois permite o amplo conhecimento e especialmente a fiscalização quanto à validade. Mas isso não pode ir ao ponto de, não havendo indicativo de efetivo dano ao interesse público ou, como no caso, nem sequer uma conduta propriamente dita , impor sanção ao agente público.

É por isso que, não vislumbrando ato ímprobo a ser imputado ao demandado, não vejo sentido em lhe atribuir condenação.”

(TJSC, Apelação Cível n. 0001053-75.2013.8.24.0047, Relator: Desembargador HÉLIO DO VALLE PEREIRA, julgado em 07/11/19)

 

Por Manolo Del Olmo (OAB/SC 13.976) – Advogado Titular da Del Olmo & Advogados Associados